Uma réplica miniaturizada da favela carioca do Pereirão está sendo considerada uma das atrações de maior impacto da 52ª Bienal de Arte de Veneza, que abriu oficialmente ao público no fim-de-semana.
Nos dois primeiros dias dedicados a inaugurações exclusivas para colecionadores de artes, jornalistas, artistas e convidados especiais, o trabalho iniciado por um grupo de meninos do projeto Morrinho em 1998 recebeu inúmeros elogios.
“Bienal é sempre uma coisa chata, com o mesmo tipo de arte que estamos acostumados a ver nos museus. Mas o Morrinho é algo novo, impactante, com uma proposta diferente”, afirmou Claudio Poleschi, dono de uma galeria de arte na Toscana. “O trabalho destes garotos é espetacular. Faz refletir, pensar que estamos em um mundo diferente daquele que circunda as artes plásticas.”
Poleschi ficou tão apaixonado pela maquete da favela, que se manteve em frente do local por quase duas horas. Prometeu voltar no dia seguinte.
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“Quando o curador Robert Storr convidou os garotos para ‘ocupar’ a Bienal ele sabia bem o que estava falando”, disse Laura Burocco, produtora do projeto na Itália. “É justamente isto que está acontecendo. A favela está aqui, em local privilegiado, no meio do Giardini e em frente ao pavilhão dos Estados Unidos.”
Os dez garotos que se encontram em Veneza desde 13 de maio para montar a favela estilizada na Bienal estão satisfeitos com a experiência.
“Ainda não me considero um artista de verdade”, afirmou Nelcilan Souza de Oliveira, de 24 anos, idealizador do projeto com a ajuda do irmão Maycon, de 17 anos. “Hoje, a brincadeira que nós criamos se tornou um trabalho e respeito muito isso. Estar aqui na Bienal de Veneza, o evento de arte mais importante do mundo, é uma grande honra. É algo que jamais vamos esquecer.”
"As galinhas passavam perto e sempre destruíam tudo. Aí, tivemos a idéia de usar tijolos e deu certo"
Nelcilan e Maycon, que ainda moram na favela Pereirão, localizada em Laranjeiras, zona sul do Rio, começaram a montar as casinhas com azulejos. Mas não funcionava.
No alto do Morro do Pereirão, eles contruíram uma cidade de mentirinha, que imitaram em miniatura o universo que os circundava. Há de tudo: escola, creche, hospital, lanchonete, campo de futebol, casas, motel, quadras de baile funk, bocas de fumo, postos de luz, vielas, escadarias, biroscas e um batalhão da Polícia Militar.
“Nós não tínhamos muitas opções de lazer”, lembrou Rodrigo Perpétuo, de 23 anos. “Começamos brincando sem nunca imaginar que isto poderia ser considerado arte.”
Os meninos criaram a maquete, conhecida como Morrinho, que, em pouco tempo, se tornou o grande parque de diversões da comunidade.
Estão lá miniaturas de veículos, motocicletas, além do caveirão, o tanque usado pela polícia, que amedontra os moradores das favelas cariocas.
Dentro das casas, há camas, armários, flores e, em algumas, árvores de Natal. Os habitantes são centenas de bonecos feitos de blocos Lego, unidos com durex e o roteiro das brincadeiras é o mesmo da realidade em que vivem no morro, com tiroteios, batidas policiais, balas perdidas, assassinatos e muita revolta social.
É como se eles estivesses num vídeo game real. O jogo de ação segue as regras da favela. É uma versão da realidade de quem cresce numa favela brasileira. Tem ‘bandidos’, ‘mocinhos’, vítimas e testemunhas, que formam o conjunto da população local.
“Esta é uma das coisas mais legais e interessantes que já vi em toda a minha vida”, disse o criador e escritor artístico canadense Randy Gladman, que acompanhou os meninos brincando na réplica instalada no Giardini da Bienal. “Não tenho muita informação sobre como é a vida em uma favela brasileira além do que vi no filme Cidade de Deus. Mas isto aqui é absurdamente incrível.”
Segundo Laura Burocco, o curador da Bienal, o americano Robert Storr conheceu o trabalho do Morrinho através da série de fotos sobre eles feita pela artista Paula Trope. Depois disto, decidiu ver o projeto pessoalmente.
“Ele viajou para o Rio de Janeiro sozinho e chegou na favela sem avisar ninguém”, lembrou Laura. “Quando ele viu o trabalho dos garotos, ficou impressionado e fez o convite na mesma hora”
Com o convite do curador, as passagens dos dez moradores do grupo Morrinho foram custeadas pela Bienal de Veneza.
O governo brasileiro autorizou a captação de RS 842 mil, em renúncia fiscal através da Lei Rounet, que garantiu o transporte dos 13 mil tijolos e 70 quilos de miniatures de carros e bonecos para a montagem da instalação.